João Alves da Costa (n. 1948), Sadomasoquismo, S. F. F. (1985)
João Alves da Costa (n.1948)
João Alves da Costa celebrizou-se enquanto autor de textos que ele próprio classificou como "novo jornalismo ou literatura de não ficção", tais como Droga e Prostituição em Lisboa (1977), Bruxas à Portuguesa (1984) e este Sadomasoquismo, S.F.F. Inicialmente jornalista do extinto Diário Popular, produziu os dois últimos livros quando já era jornalista desportivo de A Bola. Entretanto, havia já publicado um outro texto dentro da mesma corrente, América em Carne Viva (1974), onde relata a sua experiência nos E.U.A., e uma obra de ficção menos conhecida, As Diabruras do Menino Hamlet (1975), classificada pelo autor como "novela fragmentária".
De Masoquismo, S.F.F., transcrevem-se dois parágrafos:
"Não se riam à frente dele. O Perdiz no seu tempo de Lisboa manteve uma ocupação num escritório de contabilidade. Guardava o Plano Oficial de Contas na gaveta da secretária como um... fardo de palha (a imagem era dos colegas maldosos). Passou lá dois meses a prazo, a um ritmo fraco de laboração, os fornos exteriores da empresa ribatejana que o admitiu espalhavam o ingrediente a sete ventos numa fumarada nauseabunda que vestia as árvores de prata escura. Causava tosse e bronquite no aquecimento de um líquido caldoso que mais lembrava creme pastoso de cogumelos. O Perdiz indagava: para que serviria o produto, eles chamavam-lhe essência... O Perdiz deu voltas sobre voltas. Seria detergente para secagem instantânea de roupa de cor? Seria chumbo para armamento de guerra destinado a Braço de Prata e dali para a guerrilha na América do Sul? Ou não, apenas cera para dar brilho à corticite, cera cheirosa que dava um ar de incenso e outro de tungsténio? Claro que havia quem, ao ouvido, falasse na hipotética recuperação do volfrâmio para vender aos alemães em caso de terceira Guerra Mundial?
O Perdiz contava pelos dedos as existências em armazém, pastosamente conferia as ausências de funcionários em véspera de folgas ou "pontes" prolongadas, ele estava atento a quem fracturava três vezes o mesmo pé durante os feriados de Junho, aconteceram lesões súbitas, inacreditáveis, mas todas elas comprovadas pelo papel selado: desde as mordeduras de peixe-aranha (em Moura, no Alentejo!), aos picos de urzes nos Santos Populares (na Baixa lisboeta!), até casos de gangrena (numa casa de sumos, em Cascais), o ficheiro das unhas encravadas (na praia do Alvor), da febre de Malta (na marina de Vilamoura), das dores de menstruação (até em homens, pois claro!) à amputação do membro vital (no túnel de Santa Apolónia). Mais tarde, devidamente cobertos pelo seguro, reabilitar-se-iam, mas nunca antes do Magusto e a verdade é que em ocasiões especiais (Páscoa na Serra Nevada) entraram pedidos de dispensa para deslocações a Marrocos, onde chefes de repartição alegaram ir mudar de sexo. E, inclusive, no México, uma chusma de dactilógrafas obteve um divórcio colectivo. Tudo casos de força maior. E no cabelo nunca pululou tanto a sarna, nas zonas pilosas delicadas era o reino das escábeas, nos dentes surgiu o escorbuto, nos órgãos genitais o herpes esteve no "top-ten" das dispensas."
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