Autógrafos - Manuel da Fonseca
Manuel da Fonseca (1911-1993), Um Anjo no Trapézio (1968)
Capa de Pilo da Silva (Piló; 1905-1988)
Manuel da Fonseca (1911-1993)
Autor neo-realista, Manuel da Fonseca desenvolveu em prosa uma obra que retrata o Alentejo, as suas vilas e os seus montes, a sua ruralidade, o sofrimento da sua gente, a solidão. Como muitos dos escritores daquele movimento, Manuel da Fonseca era militante do PCP. A sua primeira colectânea de contos, Aldeia Nova, surgiu em 1942. Na poesia, Rosa dos Ventos (1940) foi a sua primeira publicação, em edição de autor. Seguindo os cânones neo-realistas, deixou-nos belíssimos poemas, como Domingo, um comovente retrato da vida urbana, com as suas desilusões e as suas esperanças.
De Um Anjo no Trapézio, uma colectânea de narrativas essencialmente urbanas, transcreve-se o excerto inicial do conto Manhã Sem Dia:
" Cada vez, as ondas subiam até mais longe, pela duna. Com um referver assobiado de espumas, quase chegavam agora aos pés do homem que estava lá em cima deitado, a olhar para a aldeia.
Só quando a primeira onda lhe molhou as pernas o homem se apercebeu do encher da maré. Levantou-se. De roupão meio encharcado a arrastar pela areia, foi estender-se um pouco adiante da crista da duna. Apoiou o queixo nos punhos cruzados, e continuou a olhar a aldeia.
Assim estava ainda, quando o ranger da areia sob pés nus soou. Nem se moveu. Sabia que era a mulher que vinha ao seu encontro, como todas as manhãs.
– A água? – perguntou ela, depois de poisar o saco.
– Hã?
Quieta, por instantes, a mulher observou-o. De costas para o vento, ajeitou o roupão sobre a areia, tirou do saco um frasco acastanhado, uma caixa azul, redonda, e sentou-se.
– Como está hoje a água? – tornou ela a perguntar. – Fria?
– Não sei – disse secamente o homem. – Ainda lá não fui."
© Blog da Rua Nove