Manuel Ribeiro de Pavia
Ilustrações para Retalhos da Vida de um Médico (3.ª edição, ampliada, c. 1953), de Fernando Namora (1919-1989).
"(...) Confesso que este Pavia, mesmo com as duas faces justapostas – que só por abstracção de ódio ou apologia inepta se podem separar – , nunca me interessou. O outro, sim. O combatente de um Sonho de Arte-maior-do-que-ele, ao qual sacrificou tudo: vida, bem-estar, saúde, amor e porventura até o próprio Sonho... E o vagabundo, arrastado desde a infância por um fogo de Aventura que nenhum vento conseguiu apagar e se adivinhava em cada gesto, em cada praga, em cada sorriso, em cada sarcasmo, em cada olhar de desprezo com que fulminava o Universo, quando descia o Chiado, imponente e ágil, sem cinco réis na algibeira rota de príncipe.
Admirável Pavia!, inventor de quimeras e devorador encantado de poemas, tão diferente de alguns badamecos que por aí andam, cobertos de musgo pilha, a fingirem de artistas... E afinal, à hora da morte, que deixam?... Sim, que deixam?... Nem obra nem vida. E muito menos esta bagatela qur transcende às vezes a própria obra e constitui como que o segredo da imortalidade, alcançada por poucos à custa de incêndio, de cólera, de fome, de dor, de paixão nua: dar-se ao mundo como matéria-prima para um mito.
De súbito, o Domingos Monteiro entrou na sala, confrangido de desânimo.
– Chamou-me para me pedir que não o deixasse morrer – disse.
Arrepio de lágrimas em muitos olhos.
Em todos, menos nos meus. Eu não choro. Não quero passar dias e dias com remorsos de ter aproveitado este pretexto para chorar por mim."
in José Gomes Ferreira (1900-1985), Imitação dos Dias (1966; 3.ª edição, 1977).
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