Autógrafos - Garibaldino de Andrade
Garibaldino de Andrade (1914-1970), Sete Espigas Vazias (c. 1955).
Ilustrações de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957)
Garibaldino de Andrade (1914-1970).
Tendo escrito na década de 1940 os livros de contos Vila Branca (1944) e O Sol e a Nuvem (1949), obras que traduzem a sua vivência do Alentejo e se aproximam do Neo-Realismo, Garibaldino de Andrade deslocou-se na década de 1950 para África.
Aí, em conjunto com Leonel Cosme (n. 1934), fundou e dirigiu, a partir de Angola, a famosa colecção Imbondeiro, que promoveu durante duas décadas a diversidade da literatura africana de expressão portuguesa.
Do livro Sete Espigas Vazias, um grande romance sobre o Alentejo, um romance injustamente esquecido de um autor injustamente esquecido, transcrevem-se três parágrafos:
"Desde a guerra de Espanha que Joaquim atravessava a fronteira. Era a hora dos negócios pingues. Nas feiras, os marchantes não tinham mãos a medir. Lavradores de carteira farta compravam gado a olhos fechados. Terras que deviam andar a pão, ficavam para pastos. De noite, horas mortas, os cascos entrapados, os animais transpunham a linha convencional que separa os dois países. Ali, vendiam-se maços de cigarros e pães de trigo duvidoso por um punhado de pesetas. Homens famintos, olhos ardendo em febre, atravessavam o Chança e o Guadiana e metiam-se às estradas, esmolando e roubando. Vilas quietas, adormecidas na planície, foram invadidas por chusmas de engraxadores e vendilhões de tuta e meia. Mulheres e raparigas, algumas quase crianças, entregavam-se a quem lhes enganasse a fome. Contrabandistas, pela calada da noite, pelo pinto do meio-dia, a toda a hora, rindo-se dos guardas-fiscais e iludindo os carabineiros, carreavam víveres, roupas, tralha de toda a espécie. Às vezes soavam tiros e caíam homens mortos. Mas isso não importava. Nos caminhos sinuosos ao longo da raia, agitava-se uma humanidade inquieta, que perdera a fé, a lei e a esperança, que é o rumo do futuro."
"O velho Nogueira vendera a Filada e Vila Branca estava morrendo. Deitando cálculos à vida, Antoninho da Loja viu as estantes desguarnecidas e o livro das contas cheio de cães de todas as raças... Que ia ser dele, da mulher e do filho? A loja era a sua enxada. Cerradas as portas, de que se iam governar? Matutando nisto, fugira-lhe o sono. Errava pelos cantos, aos suspiros fundos, escondendo dos seus a realidade triste. Uma vez, não pôde mais. Aproximava-se o prazo da reforma de uma letra: quinze dias para desencantar três contos. Onde?, onde? todos os caminhos bloqueados: os que lhe deviam, não pagavam; os que tinham dinheiro, chamavam-lhe seu; e, na gaveta, outrora próspera, apenas o chocalho e um punhado de moedas...
Desabou sobre o caixote das sonecas, e, numa crise de choro, ali o fora surpreender o filho. Aos brados deste, acudira a mãe. Naquela hora de desânimo, Antoninho da Loja contou-lhes o engano em que viviam. Por três contos, não seriam mais donos de coisa nenhuma: levariam o balcão, as estantes, os míseros trapos que ainda as enfeitavam..."
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