Macau, 1936 (XXVII)
A metáfora da caixa continuou a persegui-lo até ao hotel. Já no quarto, desapertou a pequena bolsa aveludada do netsuke que adquirira ao casal japonês. Até o daymio, sorridente, trazia entre as mãos uma caixa. Fechada, claro.
Segurando na pequena escultura, deixou deslizar distraidamente os dedos pelas curvas da madeira polida. A caixa e a espada impediam-no de rodar continuamente a figurinha entre os seus dedos da mão direita, como desejava. Um desejo que o surpreendeu. Pensou nos gestos instintivos de quem rodava as contas de um rosário. Lembrou-se das ave-marias e pai-nossos que as beatas idosas repetiam diariamente na matriz da sua cidadezinha natal. Rostos quase esfumados na penumbra do templo, de bocas enrugadas e envelhecidas. Mãos artríticas tremendo lentamente. Movendo os lábios como autómatos, aquelas figuras espectrais, negras, ciciavam orações que pareciam intermináveis lenga-lengas mágicas, girando vezes sem conta as esferas dos rosários.
Rosários que mais tarde se voltaram a recortar contra a ofuscante brancura da cal mediterrânica e se multiplicaram pelo oceano fora. Em Port Saïd, o velho muçulmano segurando as contas numa mão e tapando o rosto para a fotografia com a outra. No Caïro, as contas de um colar de marfim no colo macio de Boubouka. Depois da neblina do Índico, já em Macau, a serena imagem de um sacerdote budista sobressaindo das nuvens de incenso. As mãos, quase imóveis, segurando delicadamente um rosário.
A caixa e a espada. As esferas. Todos estes elementos lhe pareceram constituir símbolos de um quebra-cabeças que tinha de resolver. Não conseguia, contudo, compreender onde isso o levaria. Desistiu destas reflexões e aproximou-se da janela.
Olhando para a avenida Almeida Ribeiro, notou o contínuo movimento dos transeuntes em direcção ao hotel. Quando chegara a Macau, vendo o movimento na rua, pensara que o mercado de S. Domingos, ali ao lado, tinha mercadores como nenhum outro. Só depois percebera que a maioria eram clientes do hotel. Clientes mais do que hóspedes, pois vinham assistir aos famosos espectáculos do Club Hou Heng, no sexto andar, ou arriscar a fortuna e a vida ao jogo. O elevador, o primeiro de Macau, inaugurado em 1928, ainda o hotel era o President, havia sido já uma metáfora dos altos e baixos do jogo, mas agora, com as constantes avarias, o trocadilho passara para a altura do edifício, com as entradas pela portaria e as saídas pelo telhado. A tradicional discrição dos suicídios silenciosos e privados, por envenenamento, cedia, ocasionalmente, à vertigem do terraço que proporcionava uma última visão de Macau.
Sentiu-se subitamente entediado com aquela vida impessoal no hotel e achou que deveria começar, finalmente, a procurar casa. Além disso, tinha de visitar as ilhas e Hong-Kong. E não o queria fazer sem antes ter arranjado um espaço seu, onde pudesse acumular depois as memórias dessas visitas e dessas viagens.
Macau, cerca de 1936.
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