Macau, 1936 (XXX)
Macau, cerca de 1936.
Sempre tinha sido assim, em todas as outras cidades. Acabara por morar nas zonas que mais o tinham atraído logo de início. Sem qualquer surpresa. Sem que fizesse qualquer esforço nesse sentido. Tudo fluíra naturalmente. Tinha sido assim em Angola. Era assim agora, em Macau.
A agitação natalícia da comunidade portuguesa levou-o a pensar um pouco mais na família, pela primeira vez em muitos meses. Estranhamente, não sentia saudades. Sentia apenas nostalgia dos rituais de Natal, da infância junto dos pais e avós. Sentia nostalgia de si mesmo, num outro tempo.
Casara, tivera filhos, mas o seu sentimento de família era algo vago, sustentado mais pela memória da infância e dos antepassados do que pela realidade familiar que ele próprio gerara.
Era-lhe mesmo indiferente a solidão em que viveria aquele Natal. Alimentava-se das memórias e dos aromas do passado. O frio das longas e silenciosas noites de inverno. A brancura das manhãs cobertas de geada. O calor da lareira. O bacalhau e os fritos da consoada. A missa do galo, quando já era mais crescido. A alegria do almoço de Natal. As rabanadas. Os sonhos. A aletria debruada a canela.
Uma aletria que viera redescobrir nas variedades, doces e salgadas, das massas chinesas. Massas que o surpreenderam e maravilharam, como quando descobrira a gelatinosa e transparente massa de arroz. Uma canela cujos sabores e aromas viera reencontrar, mais acentuados, numa infinidade de pratos que complementavam a estranha sonoridade do nome de uma outra canela, especial. Em grandes pedaços de casca, em pau, em pó – kuei hua... A canela do estreito de Macassar.
Seria aquele o seu Natal. Seriam aquelas memórias e aquelas descobertas a sua família. Seria ele próprio Pai Natal e criança deslumbrada pelas luzes feéricas das ruas e das montras.
Para atenuar qualquer sentimento de distância e afastar quaisquer remorsos familiares, decidiu enviar um postal de boas-festas para Portugal. Chegaria certamente muito depois da passagem de ano.
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