Macau, 1936 (V)
Era um amor sereno, aquele. Os momentos de cada dia surgiam como uma dádiva preciosa – as águas do Nilo transbordando e alagando os campos, o vermelho vivo dos grãos de uma romã madura, o aroma inebriante das flores de laranjeira na frescura de um pequeno pátio.
Tudo decorria a um ritmo natural, trazendo contentamento e felicidade. Ele e ela. Nada mais parecia existir. O mundo era uma relação a dois, desafiando a ansiedade insuportável, quase eterna, que antecedia cada chegada. Uma celebração renovada de cada regresso anunciado. Uma ilha suspensa no tempo.
Uma tarde, ele pegou numa velha fotografia que Boubouka guardava cuidadosamente. "Alguém da tua família?", perguntou. "Não... uma imagem de que gosto muito, nada mais..." Era uma mulher jovem, com um véu, um pequeno cilindro de cana, sobre a testa e o nariz, e uma criança de colo, sobre o ombro. "O berloque (não sabia que outro nome lhe dar) tem algum significado?", inquiriu, intrigado. "As mulheres de algumas tribos usam-no para indicar que são casadas..." Ele olhou outra vez para a fotografia, ficando pensativo. "Boubouka... Boubouka, por que é que nunca casaste?" Boubouka sorriu de uma forma enigmática. Ele lembrou-se imediatamente do sorriso da Gioconda e arrependeu-se da pergunta. Ocorreu-lhe que há fronteiras que não se devem ultrapassar, sob pena de não podermos voltar atrás... Mas já era tarde. Boubouka retorquiu-lhe, docemente, "E tu? Por que é que casaste?..."
© Blog da Rua Nove