Macau, 1936 (VIII)
Acordou com Boubouka aninhada em si. Dormia, ronronando suavemente. Levantou-se com cuidado, para não a incomodar. Entrou no quarto de banho sem acender a luz. Tacteou, procurando a torneira. Um sonho preocupante acordara-o. Mas não se conseguia recordar de nenhum pormenor. Refrescou-se com água, fechou a porta e acendeu a luz, procurando uma toalha. Limpou-se lentamente, quase acariciando cada curva do rosto. Levantou a cabeça, retirando a toalha. O seu reflexo no espelho deixou-o perplexo. Tinha a barba crescida e completamente branca. Uma calva enorme e bronzeada. O rosto moreno, gasto e cheio de rugas. Envelhecera décadas... Abriu ansiosamente a porta e voltou ao quarto, procurando Boubouka. Não estava ninguém na cama. Apenas os lençóis amarrotados, como se alguém os tivesse retorcido ansiosamente. Para lhes espremer desesperadamente todas as memórias. As memórias imaginárias de uma estreita e solitária cama de solteiro.
Soergueu-se no leito. A boca aberta, arfando, quase sem ar. As pulsações parecendo levar a resistência das veias ao limite. Este era um sonho recorrente desde que deixara o Caïro. Um sonho dentro de um sonho. Não sabia quantas vezes já acordara assim, aflito, após ter embarcado novamente no Sibajak. Sentiu na cama o embate das ondas, o ondular do navio. Estava mesmo acordado. Tentou acalmar-se.
O tempo passara a ser algo de impreciso depois do Caïro. O dia de hoje parecia não existir, era o de ontem e o de amanhã. Os dias como um só. Não recordava refeições, não recordava rostos nem passageiros. Tudo era uma eterna neblina. Uma neblina interior que nem sequer a brisa marítima dissipava.
"Sabang, Sabang!", anunciava o steward pelos decks. O som distante entrou pela vigia como o eco ensurdecedor de um gigantesco gongo. "Sabang!"
Parecia impossível! Estavam a chegar à Indonésia.
O navio Sibajak ancorado em 1936 no porto de Sabang, ilha de Weh, Indonésia.
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