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30
Jan08

Autógrafos - Helena Marques

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Helena Marques (n. 1935), A Deusa Sentada (1994; presente edição, 3.ª, 1998).

 

 

   Tendo efectuado uma carreira de jornalista durante mais de três décadas, Helena Marques publicou o seu primeiro romance em 1992, O Último Cais, obra que mereceu vários galardões, entre os quais o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. Seguiram-se-lhe este volume, Terceiras Pessoas (1998) e Os Íbis Vermelhos da Guiana (2002).

   De A Deusa Sentada, obra que relata uma viagem a Malta em busca do passado e das memórias de algumas personagens, transcrevem-se três parágrafos:

 

   "Desceram Merchants Street em silêncio, os olhos errando no pedaço de mar azul-cobalto pintado no fundo da rua, um azul demasiado forte, demasiado teatral para ser verdadeiro. Mas era verdadeiro e surgia assim, desmesuradamente azul, exageradamente azul, como uma fantasia ou uma incongruência, no limite das ruas de valletta que desembocam, invariavelmente, num dos três lados da alta península de Sceberras, entre o porto de Marsamxett e o Grand Harbour.

   O silêncio de Matilde tinha a força natural dos velhos hábitos, o conforto de uma capa com que defendia a vulnerabilidade das emoções, a serenidade de quem desaprendeu o prazer de exteriorizar e possui a sabedoria de resolver dentro de si própria as alegrias e as feridas. Em Laura, pelo contrário, o silêncio nascia apenas da impossibilidade de exprimir a sua enorme e comovida perturbação, se Lourenço ali estivesse ter-se-ia apoiado nele, encostado ao seu ombro, partilhado esse silêncio fecundo e eloquente, balbuciado todas as exclamações, naquele momento pensava justamente nas palavras que seria necessário descobrir, reinventar, para explicar a Lourenço a extraordinária descoberta da Catedral de S. João, o turbilhão de sentimentos perante a inesperada dádiva da perfeição.

   Por fora o edifício era de grande simplicidade arquitectónica e nada as preparava para o deslumbramento do interior. Ofuscadas pela luz intensa da manhã mediterrânica, haviam levado uns segundos a ajustar-se à penumbra da igreja – até que, na passagem infinita de um momento de sombras para um momento de revelação, foram emergindo volumes e formas, cores densas, ouros velhos, mármores sumptuosos, talhas e pinturas, tudo foi emergindo lentamente, quase magicamente, peça a peça, passo a passo, como se cada elemento lhes saísse ao encontro e se lhes apresentasse na sua inconfundível, inexcedível beleza individual, para regressar depois ao seu lugar singular e eterno na perfeita harmonia do conjunto." 

 

© Blog da Rua Nove  

23
Jan08

Autógrafos - Domingos Lobo

blogdaruanove

 

Domingos Lobo (datas desconhecidas), Os Navios Negreiros não Sobem o Cuando (1993).

 

 

   Jornalista e dramaturgo, Domingos Lobo iniciou o seu percurso de romancista com a presente obra. Havia até então elaborado as peças Pensa Enquanto Tens Cabeça (1978), Vida e Morte de um Português Mal-Comportado (1980), representadas pelo grupo de teatro  A Comuna, Veneno, difundida pela RDP1, e Um Violino na Lama (1992), peça sobre a vida e obra do escritor José Gomes Ferreira (1900-1985).

   Um extraordinário relato da vivência militar em África durante o final da década de 1960, Os navios Negreiros não Sobem o Cuando, combina de forma particularmente interessante uma evocação subtil e erudita de Eros e Thanatos com a frontalidade brutal das misérias e do quotidiano do conflito colonial em Angola. Uma obra que merece certamente ser recuperada do esquecimento em que se encontra, que merece ser reeditada e merece entrar nos grandes circuitos comerciais.

   Deste romance transcrevem-se três parágrafos:

 

   "Estou-me borrifando prà morte, pá, dissera o Barão uma noite, a poesia e a música é que me hão-de salvar deste atoleiro. O Barão era o animador privativo das nossas noites de cerveja e petisco. O Barão cantava e nós imaginávamos Trindades  na mata, com o Eusébio a mandar vir marisco, o Baptista-Bastos à conversa com o Manuel da Fonseca, o Diniz Machado com o Molero entre portas, o João Gaspar Simões a dizer que os "Cem Anos de Solidão" era uma trampa de romance, e que mais tarde ou mais cedo isto virava tudo em em Garcias e Marquez e pouca vergonha – e outras amoráveis visões quejandas. E uma cervejinha agora, mesmo à temperatura ambiente, até vinha a calhar.

   Transpirávamos, os poros dilatavam-se e um óleo espesso, nauseante, escorria pela pele, doía nas axilas e nas virilhas, fervíamos por dentro a todo o  vapor como as panelas de pressão na messe: íamos rebentar. O Belezas tremia rezando à deusa Walther cada vez mais perdida e insignificante na cratera das mãos papudas, o Santos limpava o suor que lhe limpava os olhos vermelhuscos, assustados, com um lencinho que sua mãe lhe ofertou quando ele, menino obediente e respeitador, fez a primeira comunhão. O Branco estava pálido, blasfemava: se esta merda não acaba já fodo os macacos todos; desabafou – eu numa lástima como se imagina pelas amostras juntas. O Barão, que limpava, sereno e absorto, as unhas com a faca de mato, levantou-se ligeiro, foi à trouxa, tirou a viola do saco e começou a trautear alto e bom som o "A Little Help From My Friends". Primeiro moderato pianíssimo, après cantabile, pui forte, allegro, por aí fora numa salganhada de sons desavindos e inglês de doca, o pessoal atónito chiu, cala-te merda e o Barão na sua Lend me Your ears and I'll sing you a song, And I'llytry not ro sing out of key [sic]. I get high with a little help from my friends, o Belezas estupefacto com o insólito isto é de mais, vão matar-nos a todos, fecha a fossa bitle de merda, o Barão caprichando nos compassos, arrebatado no despropósito Do you need anybody, I need somebody to love. Could it be anybody I want somebody to love. A malta, pouco a pouco aconchegada à melodia, foi-se adaptando àquele disparate, entrando a a arranhar o refrão, trauteando a medo e o Barão, dominador, pedia coro, força malta, Yes I get by with a little help from my friends, vá, malta, outra vez com mais força encham os pulmões carago What do you see when you turn out the light, I can't tell you, but I know it's mine, força nessas goelas para os gajos não pensarem que estamos todos borrados. Oh I get by with a little help from my friends, Do you need anybody, I just need somebody to love, quem está borrado?, ninguém gritava o coro da berliet, ninguém, with a little help from my friends, ninguém gritava [sic] de pulmões acesos os mais afoitos, os outros, num inglês príncipe-de-gales a metro da Rua dos fanqueiros, perdidos em sustenidos e bemóis, refraoavam o que a garganta dava: Oh I get by with a little help from my friends, era lindo de ver, no assustar da passarada, no espantar dos répteis, no exorcisar dos fantasmas e dos medos. esconjuravam em coro tenebroso, aos ares da mata da Kapua, os assombros e a fúria, a vida toda exposta num grito de socorro.

   Ao longe avistava-se já o fim da mata, uma claridade frouxa ao fundo da picada, o começo de deserto, o fim do pesadelo. O dia começava a despontar em fios de ovos no alto dos embondeiros."

 

© Blog da Rua Nove

16
Jan08

Autógrafos - Graça Pina de Morais

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Graça Pina de Morais (1927-1992), Na Luz do Fim (1961).

Ilustração da capa de R. Pires de Oliveira (datas desconhecidas). 

 

 

Graça Pina de Morais (1927-1992)

 

   Graça Pina de Morais entronca num veio comum a vários autores dos séculos XIX e XX – médica de profissão, dedicou às letras muita da sua vivência. Contudo, ao contrário do que acontece com alguns outros médicos, como Júlio Dinis (pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, 1839-1871), Miguel Torga (pseudónimo de Adolfo Rocha, 1907-1995) ou Fernando Namora (1919-1989), a sua obra encontra-se hoje em dia praticamente esquecida.

    No entanto, a autora teve uma estreia romancística aclamada pela crítica, com A Origem (1958) e veio a ser galardoada em 1969 com o Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências – para a melhor obra de ficção do ano – e o Grande Prémio Nacional de Novelística pelo romance Jerónimo e Eulália (1969).

   Graça Pina de Morais tivera a sua estreia literária absoluta em 1953, com os contos Sala de Aula e Os Semi-Deuses, publicados em Mosaico sob o pseudónimo Bárbara Gomes. Publicou posteriormente uma colectânea de contos, O Pobre de Santiago (1955), O Medo (1964) e alguns outros contos em colectâneas, das quais se deve salientar As Três Virtudes Teologais: Fé, Esperança, Caridade (1966), obra que integrou contos da autora, de  Manuel Mendes (1906-1969) e de Urbano Rodrigues (1888-1971), com ilustrações do pintor Nikias Skapinakis (n. 1931). A sua última obra, publicada postumamente, foi o conto A Mulher do Chapéu de Palha (2000).

   Do conto Os Incomunicáveis, publicado em Na Luz do Fim, transcreve-se um parágrafo:

 

   "Antes de se deitar, parou em frente do espelho do guarda-vestidos e ficou a olhar-se com estranheza. Há alguns meses que se sentia desligado da sua própria imagem como se esta realmente não lhe pertencesse. Essa impressão causava-lhe um sentimento angustioso, tão acabrunhante que pensava no suicídio cada vez com mais frequência. Na sua fisionomia sentia-se, mais do que se via, a proximidade da devastação. A sua cara era talvez a de todos os dias; mas as pálpebras fatigadas caíam sobre o olhar mole e doente dum desconhecido. Os cabelos tornavam-se cada vez mais raros nas fontes e a sua face cavada adquiria um desenho longuilíneo [sic], exangue e triste. Na sua infância havia um rosto que sempre lhe despertara uma inconfessável repugnância. Era uma aversão de ordem estética, tanto mais que estimava sinceramente o seu possuidor. Agora via no espelho o rosto longo, frio e tumular do seu avô. Quantas vezes se retraíra ao ser beijado por ele! Seria que o destino se encarregava de punir o pecado infantil? Aproximou-se do leito e sentou-se pesadamente. Não... Estava demasiado cansado para poder pensar em despir-se. A sua irmã Inês ainda não recolhera ao quarto. Ao entrar, vira a luz do living acesa e esgueirara-se pela escada acima, pensando que a mais familiar das conversas seria exaustiva."

 

© Blog da Rua Nove

09
Jan08

Autógrafos - Hugo Santos

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Hugo Santos (datas desconhecidas), A Morte do Professor (1998).

 

 

   Hugo Santos (datas desconhecidas).

   Tendo realizado todo o percurso da sua carreira profissional como professor, Hugo dos Santos desde cedo começou a escrever, mantendo esta actividade literária em constante paralelismo com o exercício da docência.

   Publicou os seus primeiros livros, de poesia, Caminho na Sombra e O Menino Parado, em 1957 e desde então tem repartido a sua atenção literária entre o conto, o romance e a poesia, dedicando-se também à tradução. As sua obras mais recentes são A Mulher de Neruda (2006) e Ode a Nossa Senhora do Homem (2007).

   De A Morte do Professor, uma obra que o próprio autor considera divergente das linhas narrativas de textos anteriores, devido à sua trama de inspiração policial, trancreve-se um parágrafo:

 

   "O mesmo disse Olga, a mulher, ante a incisiva mirada de Carranca. Está sentada na cama desse quarto alugado de Lourenço Marques (ele vê-a agora, daqui enquanto dispõe sobre a escrivaninha alguns livros e papéis que, horas antes, tinha arrumado já numa das malas), absorta, tentando perceber ("Já disse tudo de mim, tu sabes") o alcance do desejo assim expresso. pelo companheiro. Explicaria Fontes, o sapateiro do Largo, que é mais ad natureza do bicho humano (homem ou mulher) ocultar-se que mostrar-se.E acrescentaria que, sendo ele em todos os tempos do mundo mais caçado que caçador, lhe cumpre precaver-se, guardar-se, prover-se duma intimidade que é refúgio e autodefesa (não diria exactamente assim, por estas palavras) e usar das artes da omissão e do silenciamento (ou do nem-sim-nem-não-antes-pelo-contrário) que lhe permita destapar o que é passível de ser visto e encobrir o que, mais desnudo, a outros não cabe olhar. Reflexão, aliás, que bem poderia ser feita pelo padre Januário ou pelo sargento Aires que, por ofício de escutadores, ainda que de teor diverso, sabem que ficam sempre as borras no fundo do azeite das confidências e que é nelas que às vezes se esconde a parte da verdade que mais gratificante lhes seria ouvir. Há, no baú das memórias e dos sentires de qualquer vivente, fechada a sete-chaves, a caixinha inviolável, de segredos e mistérios, que só ao portador dela diz respeito. Pede-se autorização à consciência e, excepcionalmente, deixa-se a outrem a possibilidade de espreitar pelo buraco da fechadura. Mas não mais que isso. A caixa dos pirolitos de qualquer fabiano, já o asseverou Fontes a alguns companheiros de ocasião, é como labirinto em covaria de muito láparo. Aguarda-se daqui, mas o que se espera acaba por sair (ou não sair) pelo lado contrário."

 

© Blog da Rua Nove

  

26
Dez07

Autógrafos - Rita Ferro

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Rita Ferro (n. 1955), O Vento e a Lua (1992).

 

 

   Tendo iniciado o seu percurso literário com O Nó na Garganta (1990), Rita Ferro lançou pouco depois O Vestido de Lantejoulas (1991). Até ao momento publicou mais de dez títulos, entre ficção, crónicas e obras de cariz memorialista ou biográfico.

   Filha de António Quadros (1923-1993) e neta do casal António Ferro (1895-1956) e Fernanda de Castro (1900-1994), foi co-autora de Retrato de Família: Fernanda de Castro, António Ferro e António Quadros (1999), com Mafalda Ferro (datas desconhecidas).

   De O Vento e a Lua, uma obra que, através do retrato inicial da protagonista, Pompeia, surge como um manifesto anti-conformista (note-se o subtítulo), transcrevem-se alguns parágrafos:

 

   "A seguir ao episódio de Azeitão, Pompeia engravidou mais duas vezes, respectivamente de um cabo-verdiano e de um polícia; o primeiro, que trabalhava na Câmara, por pouco não a colheu com a forquilha com que amanhava as lixeiras.

   Chovia há três dias, e toda a cidade era um pântano.

   Ao dar com ela, levantou-a em braços e meteu-a no carro para a abrigar em sua casa. O bom homem vivia sozinho e durante duas semanas tratou dela como se fosse família.

   Pompeia esteve à beira da morte e debateu-se com ela numa luta corpo a corpo: teve febres altas, transpirações geladas e delírios angustiados, chegando mesmo a vislumbrar um desconhecido afável que parecia esperá-la ao fundo de um túnel. Ressuscitou ao fim de seis dias, depois de uma canja que o gigante africano lhe foi dando às colheres, com franciscana paciência.

   E nem uma vez abusou dela, aquele negro solitário que podia não ter dinheiro, nem mulher, nem filhos, nem mesmo um trabalho limpo, mas que tinha algo muito mais raro de encontrar: grandeza.

   Restabelecida, Pompeia deixou-se ficar por um mês a embelezara a casa que a acolhera para que esta se parecesse mais com a índole do inquilino, sem que nunca por nunca este a tivesse sondado para os fins habituais. Pelo contrário: respeitava-a como se respeita uma irmã e defendia-a como um pastor alemão.

    Na véspera de partir, Pompeia entrou no quarto dele e, sem abrir a luz, disse-lhe:

   – Você não merece estar sozinho.

   E deixou-se propositadamente fecundar para, no fim da gravidez, voltar ali e oferecer-lhe família."

 

© Blog da Rua Nove

12
Dez07

Autógrafos - Papiniano Carlos

blogdaruanove

 

Papiniano Carlos (n. 1918), Terra com Sede (1946; 2.ª edição, 1969).

Capa reproduzindo um detalhe de um óleo de Armando Alves (n. 1935).

 

 

Papiniano Carlos (n. 1918).

 

   Tendo publicado Esboço - Poemas em 1942, a que se seguiu o volume Estrada Nova - Caderno de Poemas (1946), Papiniano Carlos teve o seu nome associado desde início a uma vertente poética e chegou a  ser responsável pela secção de crítica e poesia da revista Vértice.

   Publicou posteriormente vários contos e conjugou a prosa com a poesia no volume As Florestas e os Ventos - Contos e Poemas (1952).

   Foi, contudo, na literatura infantil que atingiu o seu maior êxito, com A Menina Gotinha de Água (1962), um livro que tem tido inúmeras reedições desde então.

   Do conto Aldeia Longínqua, publicado em Terra com Sede, transcrevem-se três parágrafos:

 

   "É no abraço espantoso de montanhas bravias que fica aquele buraco. E no fundo a aldeia. Assim, Bustelo é mesmo uma aldeia do fim do mundo.

   E o que a distancia verdadeiramente no cabo do mundo é o isolamento que a tolhe ali entre montanhas bravias e um céu inexoràvelmente baixo – a que os homens chegam erguendo súplicas de braços e de mãos. Solte um berro qualquer boca e logo tornará devolvido por aquela natureza hostil. O horizonte fecha-se em volta – ali é mesmo o cabo do mundo. E uma vida sempre igual e primitiva, bárbara e vazia, que viera do fundo dos tempos como os fraguedos que coroam as montanhas derredor e a tristeza infinita daquele céu excessivamente baixo. Às vezes bandos de pombos bravos riscam aquele céu - e deixam no ar um mensagem insolúvel. E os olhares parados voltam-se de novo para o chão e o pasmo continua.

   No Inverno, as noites cobrem a aldeia com uma negra manta de farrapos, cheia de rasgões, por onde entram as guiarras inclementes e vêm espreitar as estrelas que guiam o destino das gentes. E todo o povoado tirita, enquanto os lobos, ao longe, nas cumieiras, uivam dolorosamente chamando-se uns aos outros pelos seus nomes – que é de estarrecer animais e gentes. E as noites de Inverno são em Bustelo extremamente longas, com os balidos gementes do gado medroso, nas cortes, e os amplexos fecundos com que os homens tornam a encher os ventres das mulheres ao fim de cada parto."

 

A Menina Gotinha de Água (1962; 3.ª edição, 1987).

Ilustrações de João Nunes (n. 1951).

 

© Blog da Rua Nove

05
Dez07

Autógrafos - Afonso de Melo

blogdaruanove

 

Afonso de Melo (n. 1964), Não Morrerei em Buenos Aires (2006).

 

 

Afonso de Melo (n. 1964).

 

   Não Morrerei em Buenos Aires. Um registo poético surpreendente para um autor que tinha o seu nome essencialmente associado a textos sobre desporto, em geral, e o futebol, em particular. Quase cem anos depois, surgem ecos do futurismo e do modernismo num livro que apresenta alguns poemas notáveis.

   Afonso de Melo, contudo, produziu outros textos de poesia e ficção, para além dos seus textos sobre desporto – Uma Sombra Laranja-Tigre: Em Forma de Panchatantra (romance, 2005), Tantas Mãos, a Mesma Primavera (poesia, 2005) e A-Princesa-que-Tinha-uma-Luz-por-Dentro (2005).

   De Não Morrerei em Buenos Aires, transcreve-se um trecho do poema A Balada do Transiberiano Cantada por uma Voz sem Dono:

 

"(...)

Em Perm,

mil quatrocentos e trinta e três quilómetros depois de

                                                                                        [Komsomolskaia,

fatos-macaco cinzento apáticos secam o suor nos cabides dos

                                                                                         [ombros,

homens azul-ganga aéreos na passagem dos peões,

fotocópias descoloridas de personagens ambíguas de Fassbinder,

fardas verde-água atrasadas para o comboio das dezoito e vinte

– hora de Moscovo –,

os pravadniks apressando o embarque para Nijni Novgorod,

os cilindros de fumo dos cigarros cumprindo o seu destino vertical,

a babuchka vendendo rissóis de batata em baldes de plástico por

                                                                           [meia dúzia de copeques,

e pareceu-me ver, pelo meio dessa confusa confusão intimidada,

Isadora Duncan dançando em redor do velho Iessenine

entretido na cerimónia de pôr a sua melhor gravata ao pescoço de

                                                                                          [um cão vadio.

Talvez tenhas razão, Blaise,

talvez a Patagónia convenha mais à minha imensa tristeza,

mas agora vou a caminho da Sibéria, a capital do Reino dos

                                                                                           [Taciturnos,

atrás de uma voz distante que encontrei à boleia

numa curva apertada da estrada das recordações

e que não sei ao certo de quem é

estouàesperaestouàesperaestouàesperaestouàespera

ao ritmo insubmisso dos tirantes

mil quinhentos e trinta e quatro quilómetros

de Konsomolskaia às seis igrejas de Khungur,

mil setecentos e setenta e sete quilómetros

de Konsomolskaia ao obelisco branco da Ásia,

mil oitocentos e treze quilómetros

de Konsomolskaia aos Velhos Crentes de Ekaterinburg,

a Lua parada, silenciosa testemunha,

o uivo cromossomático dos coiotes nos subúrbios,

o suspiro prolongado da maquinaria esgotada de cansaços,

mil oitocentos e treze quilómetros

entre Konsomolskaia e a  morte inequívoca do Bebedor de Sangue

a família estudadamente disposta para a posteridade dos tiros,

mil oitocentos e treze quilómetros

com a hemofilia estratégica na fila da frente à direita do pai

e a testemunha lunar em quarto minguante

pum-pum-pum-rá-tá-tá-tátá-pum-pum-pum-rá-tá-tá-tá

gotas de chuva na janela como rapsodos de rua

incapazes de fugir dos labirintos das suas canções sem sentido

e a voz

estouàesperaestouàesperaestouàesperaestouàespera

ao ritmo insubmisso dos tirantes

e dos acordãos transfigurados de Borodine.

Talvez tenhas razão, Blaise,

talvez seja a Patagónia que me convém

e talvez seja para lá que me conduz a minha transumância,

dois mil e setenta e oito quilómetros depois de Konsomolskaia. (...)"

 

© Blog da Rua Nove

 

28
Nov07

Autógrafos - Vitório Káli

blogdaruanove

 

 

Vitório Káli (António de Mesquita Brehm, n. 1927; outros pseudónimos: José Luís Conrado, Elizar Fontenarva), Jánika, O Livro da Noite e do Dia (1980).

 

 

   Tendo iniciado a sua carreira em 1943, com o romance Pólvora e Sangue, Vitório Káli atingiu notoriedade com o presente romance, galardoado com o prémio literário Círculo de Leitores e posteriormente traduzido em várias línguas.

   Seguiram-se-lhe Tupáriz e as Sementes do Céu (1988) e Terramoto (1992), mas o autor parecia já ter deixado de surpreender os leitores e, apesar de algumas traduções destas obras, os seus livros voltaram a cair na anonimidade que tinha caracterizado os seus textos das décadas de 1940 e 1950.

    O discurso narrativo de Vitório Káli permanece contudo inovador e os seus longos parágrafos, que remetem em parte para algum do discurso de James Joyce (1882-1941) e para a fluidez quase contínua da oralidade e também do pensamento reflexivo, desprezando a pontuação tradicional, parecem permitir estabelecer, hoje, um certo paralelismo estrutural com a iconoclastia discursiva de alguma ficção do seu contemporâneo José Saramago (n. 1922).

   De um parágrafo de Jánika, O livro da Noite e do Dia, que se prolonga por 21 páginas, transcreve-se um pequeno excerto:

 

   "(...) Fonteségura entrou na loja dos gravadores com aspecto terrível e nem a gentileza de Marília conseguiu demovê-lo da sua agressividade. Marília, que atendia ao balcão, chamou o gerente e a história foi mais uma vez denunciada. O gerente declarou logo à partida que as bobinas se vendiam seladas e a prova, acrescentou com ar de desafio, era que nunca uma coisa destas tivera lugar. Ouviu-se novamente a gravação  e o resultado foi o mesmo. O gerente perguntou se não haveria nas proximidades da experiência alguma personagem, mesmo que estivesse escondida, porque sempre poderia, por muito estranho que isto surja aos nossos olhos experimentados, ter ficado gravado um conjunto de sons distantes trazido pelo vento ou por alguma corrente eléctrica do espaço, enfim uma coisa destas assim. Mas não. Naquele sítio do Cerro das Almas Vagantes apenas se encontravam Fonteségura e eu. Mais ninguém. O gerente aconselhou que se fizesse nova tentativa no dia seguinte e no mesmo local e, se possível, à mesma hora. Deu-lhe uma nova bobina, também selada, olhou-o ainda desconfiado, aquele Fonteségura era mesmo um tipo esquisito com a mania dos pássaros, Marília abriu-se num sorriso de tipo profissional pois seria incapaz de meter-se na cama com ele e desta forma regressámos ao nosso laboratório. Nessa tarde, como de costume, voltámos ao Cerro. Fonteségura assegurou-me que ninguém estava por aqueles lados, eu deitei igualmente uma olhadela mais adiante, apenas os pinheiros se perdiam de vista até às margens de sinuosidades do rio Lis, o céu estava límpido como sempre acontece no verão de Leiria, e tão pouco se conseguia vislumbrar ao longe algum milhafre solitário na sua faina de escutar os segredos dos homens. Os pássaros olharam-nos com o seu ancestral interesse (é preciso aqui dizer que os pássaros nos vêem como outros tipos de sinais e que fazem a nossa identificação pelo modo que andamos ou falamos ou vestimos, tudo isto obedecerá a uma padronagem típica que os cientistas destes assuntos, Fonteségura inclusive, tratam desde há longos anos. Se não fosse isso torna-se evidente que o planteio de espantalhos de braços abertos nada significaria para os nossos bichos. A bem dizer, uma experiência foi recentemente efectuada por um abstruso conhecedor dos hábitos dos pássaros, o qual pensou provar que é a posição e a indumentária do espantalho que informam os pássaros acerca do significado de alerta que se pretende obter em casos específicos, foi mesmo o caso em que ele se dispôs a ficar durante três dias e duas noites com os braços abertos e vestido à pedinte português num terreno semeado de centeio, tendo observado que os pássaros vinham ali espreitá-lo e depois se pisgavam em grande velocidade) e vigiaram naturalmente os gestos do meu companheiro, julgo que já conheciam muito bem aqueles aparelhos de coisas redondas a girar como os óculos de lentes fortes que Fonteségura usava em operações semelhantes e me intrigavam sempre um pouco enquanto não entendi que, se ele era na realidade um especialista do ouvido, os sons captados apenas se tornavam inteligíveis quando reconvertidos em imagens visuais, isto levou-me a pensar muitas vezes naquele velho ditado de Heidegger sobre a função da visão humana, afinal todos nós descobrimos o mundo com os olhos mesmo que sejamos cegos, (...)"

 

© Blog da Rua Nove

21
Nov07

Autógrafos - João de Araújo Correia

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João de Araújo Correia (1899-1985), Os Melhores Contos de João de Araújo Correia (1960).

Capa de Victor Palla (1922-2006).

 

 

João de Araújo Correia (1899-1985).

 

   Escritor cuja temática sempre reflectiu a vivência de Trás-os-Montes e, em particular, do Alto Douro, João de Araújo Correia surge como um dos grandes contistas de temática regional do século XX.

   A sua prosa, distinta da de Aquilino Ribeiro (1885-1963), com o seu quase hermético léxico regionalista, e da de Miguel Torga (Adolfo Rocha, 1907-1995), com a sua contenção e limpidez narrativa, reflecte muitas vezes a transferência da oralidade do quotidiano para a literatura, num discurso onde também predomina, como nos autores referidos, a ruralidade ou a proximidade urbana ao mundo rural.

   Médico, João de Araújo Correia iniciou a sua carreira literária com Sem Método (1938), um conjunto de textos que o autor apelidou de "notas sertanejas". A sua consagração surgiu pouco depois com os livros Contos Bárbaros (1939) e Contos Durienses (1941), a que se seguiram vários outros títulos de ficção.

   Da antologia Os Melhores Contos de João de Araújo Correia, prefaciada por um outro escritor duriense, Guedes  de Amorim (1901-1979), transcreve-se uma breve passagem do primeiro parágrafo (que se alonga por mais de três páginas) do conto Os Livros do Diabo, originalmente publicado em Contos Bárbaros:

 

   "Amigo de saias como aquilo não houve nem no tornará a haver tão cedo cá na freguesia. Consoante o chapéu que trouxesse na cabeça, assim o procurava esta ou aquela rapariga no sítio combinado. Portanto, pode-se dizer que tinha tantos chapéus quantas amigas. Eran às dúzias... Podia montar com eles uma chapelaria abonada. Mas... que chapelaria! Porta sim, porta não, morava alguém que tinha pata com ele. Que, além no Cabo, era tudo a eito! No Cabo e nos quartéis, que ficam à beira daquele caminho negro, por onde Vossa Excelência acaba de passar para me vir ver. Era uma tempera de aço! Morreu na idade que eu tenho agora – oitenta e quatro feitos. Pois, meu caro, senhor, no próprio dia em que o deram à terra, abriu os olhos ao mundo uma menina – tão filha dele como eu sou filho de minha mãe, que Deus haja. Ó rapariga, és ou não és filha do Padre Bento? Chega-te cá. Mostra-te aqui ao senhor doutor... Anda, não tenhas vergonha! Ele tem visto muitas caras mais lindas do que a tua. O que decerto não viu, nas terras de Cristo por onde tem andado, são olhos azuis iguais aos teus. Nem rosto que pareça, como o teu, uma açucena. E, se os viu, olhos assim, olhos da cor do céu e as faces mais brancas do que a neve, foi em raparigas de cabelo loiro – nanja como tu, que tens o cabelo preto. Ó senhor doutor, repare bem. É o dia e a noite ao mesmo tempo! E, sempre que Vossa Excelência encontre disto cá na freguesia, já sabe: é sangue do Padre Bento. (...)"

 

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