Macau, 1936 (VI)
Não respondeu. Não sabia que responder. Compreendera finalmente que a doçura do sorriso de Boubouka não representava uma rendição incondicional.
O seu temperamento habitual renasceu. Sabia que a culpa da indiscrição era sua, sabia que tinha sido ele a criar as barreiras, sabia que tinha sido ele a provocar Boubouka. Mas o seu feitio difícil era uma força que não conseguia controlar. Passou a culpar Boubouka pelas mínimas contrariedades. Irritava-se com insignificâncias. O mau humor era frequente.
Boubouka parecia personificar a conjugação da submissão feminina islâmica e do martírio cristão. Calava os insultos e os despeitos. Tratava-o com a deferência que o Corão prescrevia para o mais santo e sábio dos homens. Não o recriminava, não lhe gritava, não respondia.
Mas o fosso crescia, transformando-se paradoxalmente num muro intransponível. Ambos o sabiam. O silêncio entre eles passou a ser ensurdecedor.
A sua irritabilidade não lhe permitia estar muito tempo concentrado. Pegava nos jornais em inglês ou francês e apenas lia os títulos. Folheava as revistas e mal reparava nas fotografias ou no glamour das actrizes. Uma única vez se conseguiu concentrar. Copiava hieroglifos de uma publicação egípcia, sem saber o seu significado – um círculo contendo quatro linhas onduladas; um semicírculo; um círculo contendo outro círculo, vazio; um estreito rectângulo horizontal rematado por dois semicírculos, sustentando o que pareciam ser papiros e outras plantas estilizadas.
Acabou a escrita surpreendido consigo mesmo. Por momentos estivera completamente absorvido pela tarefa. Não se lembrava que algum pensamento lhe tivesse ocorrido. Apenas deixara a mão deslizar pelo papel, como se fosse um instrumento. Um autómato. Caligrafia e caracteres impressos como se tivessem saído da mesma tipografia. Copiara frases ou ideias que desconhecia. Não sabia porquê. Hesitou antes de deitar a folha ao lixo. Acabou por abandoná-la em cima da mesa.
Uma folha de papel abandonada. A primeira coisa em que Boubouka reparou, no regresso a casa. Estranhou os desenhos. Ele mal sabia árabe e certamente quase nada da escrita hieroglífica. Menos ainda da hierática ou da demótica. "Akhet...", pensou Boubouka, "Akhet..." As inundações cíclicas do Nilo. Mas também nascente e poente, o horizonte, quando este som era transcrito com outros hieroglifos... Julho passara, chegavam os últimos dias de Agosto. Boubouka não teve quaisquer dúvidas. Aproximava-se o fim de um ciclo.
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