Autógrafos - Natália Correia
Natália Correia (1923-1993)
Sonetos Românticos (1990)
Natália Correia (1923-1993).
"...Sonetos Românticos: recado amigo de uma alma oculta que aqui floresce à luz da Mãe Radiosa..." Natália Correia, ensaísta, dramaturga, poetisa e parlamentar. Mulher, dos Açores e do mundo. Das suas incursões pelo teatro, salientem-se as peças O Encoberto (1969) e A Pécora (1983). Nítida referência ao anti-sebastianismo num momento crucial para o Estado Novo, a primeira, clara crítica à Igreja, a segunda. A sua poesia percorreu desde o início caminhos que anunciavam o hermetismo simbólico presente na lírica mais tardia. O texto desta dedicatória é disso exemplo, bem como os três sonetos que se transcrevem. Imaginemos Natália à noite, saindo do seu Botequim, uma alma oculta extasiada à luz do luar...
Ars Aurifera, III
Medita a rosa se queres ler no soneto
Sábia escritura de divina mão;
Não fátuo verso, luzir de esmaltes feito
Mas sons de imaculada concepção.
Primeiro andor do Verbo é o quarteto
Que leva a coroa para a final unção.
Quatro lumes dê mais o Paracleto
E de almo sol sai a coroação.
Alto segredo ultima esta verdade:
Acendidas as tochas da Trindade
Reincide o terceto até que vês
Por catorze degraus que ao plectro exigem
Desagravos do Verbo, ao cimo a origem
Do soneto. São contas que deus fez.
o Espírito
Nada a fazer, amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;
E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.
Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí me espera:
Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.
Poesia: Ó Véspera do Prodígio!
Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamante,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.
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