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27
Ago07

Reis Ventura e a Literatura Colonial Portuguesa

blogdaruanove

Fotografia da década de 1920 com a seguinte legenda, manuscrita por Reis Ventura, no verso: "Creio que já lhe falei no passeio que demos todos os do curso superior a Caminha, de barco. Foi muito interessante. Como vê estamos todos à secular porque a Portugal não podemos ir de hábito. Este retrato foi-nos tirado pelos padres Jesuitas da Guardia no claustro do seu convento. Eu sou esse trampolineiro marcado com uma cruz. Reis". Na frente, no canto superior esquerdo, uma dedicatória parcialmente ilegível: "A meu irmão (...) do Vasco (...)".

 

   Manuel Reis Ventura (1910-1988) foi um dos escritores que integrou aquela que se pode classificar como a segunda fase da literatura colonial portuguesa de inspiração africana, no século XX. A primeira fase, representada por escritores como Henrique Galvão (1895-1970), Julião Quintinha (1885-1968) e Castro Soromenho (1910-1968), desenvolveu-se entre as décadas de 20 e 40 coincidindo predominantemente com a recuperação do conceito de império colonial, preconizado pelo Estado Novo. A segunda fase veio a coincidir com o início da autodeterminação dos países francófonos de África, já na década de 50, e com a sublevação nas colónias portuguesas, na década seguinte. Em Angola, esta fase cristalizou-se à volta do Grupo da Província, um conjunto de artistas e escritores que contribuíram para o Suplemento Literário do jornal "a província de Angola" [sic], logo a partir da década de 40.

 

  

Luuanda, 1.ª edição brasileira (1965), à esquerda, e 3.ª edição portuguesa (1974).

 

   Durante a década de 60, este grupo, apoiado tacitamente pelo governo e pela Agência Geral do Ultramar, veio a ser contestado, na sua literatura comprometida com  o regime, por escritores de oposição ao colonialismo e ao Salazarismo, como José Luandino Vieira (pseudónimo de  José Vieira Mateus da Graça, n. 1935). Um autor que já se notabilizara na década de 50 através da sua colaboração nas revistas Mensagem e Cultura, veio a ser galardoado em 1965 com o prémio da Sociedade Portuguesa de Escritores pelo seu livro Luuanda (1963). Um prémio que se revelou controverso pela oposição que mereceu das instituições governamentais da época e pela evidente contestação ao regime que tal atribuição representava, visto Luandino Vieira ser então um preso político.

 

Cafuso (1956), capa de Neves e Sousa.

 

   Em plena década de 60, devido à guerra, o compromisso ideológico de Reis Ventura para com o regime acentuou-se, vindo a sua literatura a ser fortemente condicionada por esse facto. A sua prosa passou a reflectir aspectos panfletários e dogmáticos, características já anteriormente sugeridas na personagem Bolchevique de A Romaria, congregando o reconhecimento do regime e dos defensores do sistema colonial. Nesta transição perdeu-se, contudo, a simplicidade, a clareza e a atracção de uma prosa corrida que o autor desenvolvera nos anos 50. Assim, talvez as suas obras literariamente mais conseguidas tenham sido precisamente as dessa década, merecendo particular destaque os romances que constituem a trilogia Cenas da vida em Luanda – Quatro Contos por Mês (1955), Cidade Alta (1958?), Filha de Branco (1960), bem como o romance parcialmente autobiográfico Cafuso (1956). Nesta última obra, o narrador intradiegético relata a sua passagem por Tuy, a sua preparação sacerdotal e o abandono da vocação. Reis Ventura efectuara esse mesmo percurso, tendo embarcado para Moçambique em 1934, de onde transitou para Angola, três anos depois. Deste último romance, transcrevem-se algumas passagens que retratam de um modo divertido a vocação sacerdotal da personagem adolescente:

 

   "O meu nome é José da Silva Taveira e tenho alguns estudos. Cheguei mesmo a cursar Filosofia com os Padres Franciscanos do Colégio de Santo António, na cidade fronteiriça de Tuy. Eu já lhes conto como isso aconteceu."

    (...)

   "Entrei, muito acanhado, na pobre saleta, famosa em toda a aldeia pela sua mesa de centro e alguns móveis desirmanados que meu pai trouxera do Brasil. O sr. Padre Inocêncio lá estava, alto e encorpado, com a testa rompendo até à coroa por entre duas farripas altas de cabelos, a fitar-me com os olhos bondosos, por baixo das sobrancelhas espessas. Naquela sua voz sonora de prègador de nomeada, perguntou-me logo, sem rodeios:

   – O menino quer ir para o colégio?

   Colhido de surpresa, derivei para minha mãe um olhar indeciso.

   – Vá, responde! – encorajou ela.

   Na minha consciência infantil, entendi que me destinavam para padre. Ràpidamente, corri os olhos cobiçosos pela grande fila de botões que o austero franciscano ostentava na batina. Lembrei-me dos puxões de orelhas que tinha apanhado pela mania de tirar à braguilha das calças o material para o jogo do botão. E, no meu íntimo, concluí:

   – "É furo!"

   O sr. Padre Inocêncio, bem longe dos meus silenciosos cálculos, ergueu-me o queixo com dois dedos amáveis e, olhando-me com bondade, proferiu:

   – É um colégio muito grande, numa cidade muito bonita. Queres ir?

   Mirei-lhe novamente os botões da batina. Caramba! Eram mais de vinte, alinhados, pretos, luzidios... E, resolutamente, respondi:

   – Eu quero, sim senhor."

 

Engrenagens Malditas (1964), capa de António Lino (1914-1996).

 

   A propósito da controvérsia que envolveu a atribuição do prémio do SPN em 1934, transcreve-se um excerto da entrevista que Reis Ventura concedeu ao jornal "a província de Angola" em 10 de Junho de 1970:

 

   "– Sabemos que ganhou o Prémio Antero de Quental em concorrência com Fernando Pessoa...

   – Não é verdade! E sinto-me envergonhado sempre que se fala nisso. Aconteceu apenas que a "Mensagem" de Fernando Pessoa, apresentada como "a Romaria", ao primeiro concurso literário do Secretariado da Propaganda Nacional, em 1934, não tinha o mínimo de cem páginas, exigido pelo Regulamento para as obras concorrentes ao Prémio Antero de Quental. Mas, ao atribuir-lhe o Segundo Prémio (apenas para respeitar a letra do Regulamento), o Júri proclamou o valor excepcional da "Mensagem" e declarou equiparados  os dois prémios da Poesia. Perante tão clara atitude, até eu, que era então ainda um garoto cheio de pequenas vaidades, compreendi que o Primeiro Prémio de Poesia, em 1934, estava conferido, de direito e de facto, a uma obra de génio, perante a qual os meus versinhos de rapaz nem sequer existem."

 

   Estas considerações tinham sido já consubstanciadas estrutural e conceptualmente em A Grei (1941), obra que em plena guerra colonial ressurgiu com o título Soldado Que Vais À Guerra (1964). Nesta reedição ligeiramente modificada, Reis Ventura passou a apresentar como composições introdutórias quatro poemas que anteriormente surgiam no final do livro e cujos títulos e conceitos são obviamente evocativos da Mensagem – Viriato, Aljubarrota, O Sonho do Infante, 1640.

 

© Blog da Rua Nove

04
Jul07

Autógrafos - Reis Ventura

blogdaruanove

 

Reis Ventura (1910-1988), A Grei (1941)

Capa de Rui Vieira da Costa (datas desconhecidas)

 

 

Reis Ventura (1910-1988).

   Reis Ventura esteve involuntariamente envolvido em 1934 numa célebre polémica sobre galardões literários, quando o seu livro A Romaria (que assinou como Vasco Reis) obteve o prémio Antero de Quental do SPN. Inicialmente, a obra de um outro escritor tinha sido preterida e, aparentemente, só a intervenção pessoal do director do SPN, António Ferro (1895-1956), apaziguou o clima de contestação que se gerou – através da sua intervenção, nesse ano foram concedidos, excepcionalmente, dois galardões ex-aequo. O livro preterido tinha sido Mensagem, de Fernando Pessoa (1888-1935).

   Tendo abandonado a vocação sacerdotal na década de 1930, Reis Ventura fixou-se em Luanda, Angola, onde veio a publicar o seu segundo livro, A Grei (cuja edição refundida receberia em 1964 o título Soldado que Vais à Guerra). Embora nas suas obras iniciais tenha evidenciado preferência pela poesia e pela realidade portuguesa da então metrópole, Reis Ventura notabilizou-se pela escrita em prosa que retratou a realidade angolana da época, nomeadamente através da colectânea de narrativas Sangue no Capim (1962 e 1963), da colectânea de contos Cidade e Muceque (1970), e dos romances Quatro Contos por Mês (1955), Fazenda Abandonada (1965), Caminhos (1965) e Engrenagens Malditas (1965), entre outros. Publicou também um romance de ficção científica, Um Homem de Outro Mundo (1968), em que o protagonista, Thull, um ser do planeta Mil, efectua um périplo pela Terra depois de aterrar nos arredores de Luanda.

   Escritor cuja produção foi sempre conotada com a defesa do Estado Novo e do regime colonial, Reis Ventura é actualmente um autor marginalizado e esquecido, tanto em Angola como em Portugal. De A Grei, uma elegia ao povo, como o título deixa transparecer, transcrevem-se as três primeiras estrofes:

 

   "Primeira Parte – Friso de Almas

 

    O Ti-Zé

 

    Os seus olhos são olhos portugueses,

    duma clara viveza e formosura;

    olhar firme e leal, de tam afeito

    a olhar sempre a direito

    a vida

    tantas vezes

    batida

    pelas vagas da amargura...

 

    Olhos de português – olhos de artista,

    de terem sempre à vista

    essa beleza

    da Virgem-Natureza,

    suave, e doce, e meiga como a lua;

    essa carne da terra

    que, no seu ventre, encerra,

    a vida forte e  bela, verdadeira e nua;

    e, em frémitos de amor,

    é bondade que alegra

    a face duma pedra

    e o cálix perfumado duma flor...

 

    – Olhos de português... as mãos bem calejadas,

    feridas ao contacto das enxadas,

    são as mais dignas, preciosas, mãos

    de todos nós, irmãos

    pela alma imortal, dentro do ser

    da nossa humanidade;

    são as mãos do trabalho, as virgens da bondade,

    as mais puras e dignas de viver..."

 

Capa de Neves de Sousa [sic; provavelmente, Albano Neves e Sousa, 1921-1995]

 

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